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Entrevista

“É sobre o presidente quebrar esse padrão de branquitude e masculinidade”, crava promotora sobre diversidade no judiciário

Por Camila São José

“É sobre o presidente quebrar esse padrão de branquitude  e masculinidade”, crava promotora sobre diversidade no judiciário
Foto: Stella Ribeiro

Citada na pela Educafro entre 10 juristas negros para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) e nomeada uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo, na edição Lei & Justiça, a promotora do Ministério Público da Bahia (MP-BA), Lívia Vaz, aponta a necessidade de uma composição diversificada no sistema judiciário. Essa diversidade, conforme a jurista, engloba gênero, raça e regionalidade. 

 

Para Vaz, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem a oportunidade de em seu terceiro mandato “quebrar” o “padrão de branquitude e masculinidade” com as indicações para os tribunais superiores. Com a indicação do advogado Cristiano Zanin para o lugar de Ricardo Lewandowski no STF, a expectativa é que Lula indique uma mulher negra para a cadeira da presidente Rosa Weber, que ficará vaga em outubro. 

 

Lívia Vaz é coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (GEDHDIS) do MP-BA, doutora em Ciências Jurídico- Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e autora dos livros "A Justiça é uma mulher negra" (Coleção Juristas Negras) e "Cotas Raciais" (Coleção Feminismos Plurais).

 

A senhora foi citada pelo Educafro como sugestão para ocupar uma vaga no STF. Pretende mesmo pleitear essa cadeira? 

Não é um espaço que se pleiteie, que alguém se coloque como candidato ou candidata. É uma escolha exclusiva do presidente da República, segundo a própria Constituição Federal de 1988. Entende? Então, não é um fato que alguém deva pleitear. Agora, por óbvio, que é algo que eu venho defendendo há muito tempo, que é a diversidade no sistema de Justiça. Nós temos um sistema de Justiça no Brasil ainda majoritariamente branco e masculino, e isso traz impactos diretos na forma como nós construímos justiça, na própria forma como as pessoas acessam a Justiça. Você coloca uma coisa toda feita na justiça também. Então é muito importante que nós tenhamos diversidade não apenas na nossa sociedade, nossa sociedade é muito diversa e não está espelhada nos poderes públicos. Então, em um estado democrático de direito é preciso que essa diversidade seja espalhada em prol dos homens, não apenas no governo, no Poder Executivo, mas também no Legislativo - é outras dificuldade que a gente tem, são poucas pessoas negras no Congresso Nacional, nas Casas Legislativas de um modo geral no Brasil, e no sistema de justiça me parece o pior desses espaços em termos de diversidade.

 

Mas para ser indicada à vaga é preciso demonstrar certo interesse em ocupá-la. A senhora tem interesse em ocupar essa cadeira?

O cargo no STF é um grande desafio e eu entendo como uma missão. Por óbvio que se houver…eu entendo até com uma uma escolha dessa perspectiva como uma convocação. Uma convocação a debatermos um novo sistema de Justiça, a construirmos um novo sistema de Justiça que reflita, minimamente, a diversidade da população brasileira. Então, nós precisamos de diversidade em todos os poderes: Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. No Judiciário, mais necessário diante das adversidades que nós temos hoje mesmo em Salvador, mesmo na Bahia. E a gente precisa que esses dados sejam apurados. A gente tem pesquisa do CNJ, Conselho Nacional de Justiça, que vai dar conta de que pessoas negras na magistratura brasileira, no Poder Judiciário, são apenas 12,8% no Brasil. Quando a população negra representa 56% da população brasileira. Quando falamos em mulheres negras, o resultado é pior ainda porque mulheres negras não chegam a 6% da magistratura no Brasil. Então, é fundamental nessa interseccionalidade. Precisamos de diversidade de raça, de gênero, Precisamos de diversidade também de regional. O STF é um espaço que se concentra no sul e sudeste do país. Então, nós tivemos até o momento três mulheres, as três brancas, do eixo sul-sudeste compondo aquela Corte, que é a mais alta Corte de Justiça do Brasil. Tivemos três homens negros e os três de Minas Gerais. Nunca tivemos pessoas negras do Nordeste ou mulheres do Nordeste. Então essas essas interseções são importantes. 

 

Já que estamos falando dessa diversidade, mesmo tendo esse apelo social pela indicação de uma mulher negra e até o apoio de alguns ministros do governo, a cadeira de Ricardo Lewandowski ficou com Cristiano Zanin. Como a senhora avalia essa indicação? Acredita que de fato o presidente Lula pode indicar uma mulher negra para o cargo com a aposentadoria de Rosa Weber?

Eu penso o seguinte, não é sobre apenas termos uma mulher negra hoje, Lívia Santana Vaz ou qualquer outra jurista, temos muitas juristas negras competentíssimas que atendem requisitos constitucionais, isso é importante falar. Mas não é só sobre isso, é sobre o presidente da República ser também, historicamente, o primeiro presidente da República a quebrar com esse padrão de branquitude e de masculinidade no sistema de Justiça. Então, não é só sobre as pessoas que vão ingressar no sistema de Justiça, mas é sobre toda a simbologia de abertura de caminhos que se dá a partir disso. Então quais são os requisitos constitucionais? Importante dizer isso, é uma escolha do presidente da República, está dito na Constituição, a pessoa a ser nomeada deve ter entre 35 e 65 anos de idade, ter reputação ilibada e notório saber jurídico. Então, a escolha que o presidente venha a tomar tem que respeitar essas preposições e depois tem a sabatina no Senado Federal. Esse é o caminho percorrido. Os outros tribunais têm uma forma diferente de escolha dos seus membros. Existem sim candidaturas. A pessoa se candidata, forma-se uma lista sêxtupla, depois uma lista tríplice e dentro da lista tríplice o chefe do executivo escolhe, entre as três pessoas, quem vai realmente para a Corte. No STF é diferente. A Suprema Corte é diferente. Mas sim, o presidente tem essa oportunidade de demonstrar de fato que o governo pretende expandir a diversidade para toda a composição dos poderes públicos, mas também para as suas práticas institucionais, para suas políticas públicas. A gente tem essas duas vagas esse ano, mas até o final do governo Lula é bem possível, bem plausível que haja outras vagas também para o Supremo Tribunal Federal. Então o que o movimento de juristas negras inclusive tem pleiteado não é uma jurista negra, não é a próxima vaga para uma jurista negra, é juristas negras no STF e nos tribunais superiores porque tem instâncias em que mulheres negras não estão representadas. 

 

É que paralelo ao STF tem as vagas do STJ…

STJ, o TSE agora que nomeou novos membros. Os tribunais federais também, regionais federais estão com vagas aí sendo abertas ao longo do ano e ao longo do próprio mandato do presidente Lula também terão novas vagas. Então é sobre isso, não é só sobre o STF. Mas toda a composição do sistema de Justiça, que não tem diversidade. 

 

A senhora já citou a questão das mulheres, que atualmente temos duas mulheres brancas no STF. Para senhora qual seria o impacto direto no funcionamento do sistema de Justiça, até na relação com a sociedade, de ter essa diversidade representada nos atores que fazem parte desses órgãos? 

Primeiro, as pessoas precisam se enxergar. O Estado não é um em si mesmo, o direito não é um em si mesmo. A Justiça, o sistema de justiça também não é um em si mesmo. Ele precisa refletir não só a diversidade em termos de aparência das pessoas, não é só sobre isso, mas das vivências das pessoas. As pessoas levam para o seu cotidiano, para a sua atuação funcional, para a construção do sistema de Justiça as suas vivências na condição de mulheres, na condição de mulheres negras, na condição de mulheres negra nordestinas e essas vivências são importantes. Até eu costumo dizer que nós temos hoje um sistema de Justiça, que ainda produz visões unilaterais do que seja justiça, do que seja igualdade, do que seja liberdade. Porque são majoritariamente, hegemonicamente, homens brancos decidindo sobre os destinos de pessoas negras que não acessam direitos fundamentais com igualdade de oportunidade. E são pessoas que estão julgadas, que muitas vezes não têm oportunidade de acessar os seus direitos por outras pessoas que por estarem nesse lugar de privilégio, que é o lugar do privilégio da branquitude, sequer conhece a realidade das pessoas que estão sendo julgadas. Então, eu costumo dizer que as pessoas que compõem o sistema de Justiça, seja na Defensoria Pública, no Ministério Público, no poder judiciário são servidores públicos, são servidoras públicas. Como é que você serve a um público, como é que garante direitos a um público que você não conhece? Você desconhece completamente a realidade daquelas pessoas, as dificuldades, as demandas, os obstáculos para acessar direitos. Então, é preciso que minimamente enquanto essas pessoas não conseguem estar conosco compondo esses temas, que isso é importante, a presença é importante, e não apenas de uma ou duas, mas a presença realmente é tendente a uma proporcionalidade é importante, mas enquanto isso não acontece é fundamental que sistema de Justiça possa escutar as pessoas, possa escutar os movimentos sociais, possa compreender essas demanda para que esse julgamento não seja um julgamento alheio à realidade da população brasileira.

 

E quais mecanismos a senhora acredita que é possível para que se escute? Como é possível o sistema judiciário refletir a sociedade e essa maioria populacional? Qual é o primeiro passo para isso? 

São vários passos. Nós temos a composição, como eu estou dizendo, é fundamental para que essas experiências e vivências estejam também por dentro fazendo a diferença. É importante que os movimentos sociais sejam escutados. Alguns órgãos do sistema judiciário têm feito isso já, o CNJ, o CNMP por vezes fazem reuniões, encontros envolvendo os movimentos sociais para ouvir essas demandas que vêm dos movimentos sociais, ouvir suas realidades, para que isso impacte na política institucional também. Então, essa escuta é importante também. E a concretização dos instrumentos internacionais que o Brasil se compromete a cumprir, mas que muitas vezes não são de fato concretizados em nosso país. A gente precisa de um estado brasileiro, precisa que as políticas públicas de igualdade racial sejam políticas de Estado e essas políticas de que o Estado não são aplicadas aleatoriamente, elas são aplicadas e concretizadas com base na Constituição Federal, nos compromissos internacionais no Brasil inseridos nessa Constituição. Então, essa constituição faz uma base democrática, não há como a gente pensar numa democracia efetiva sem concretizar a igualdade.

 

Nesse campo, recentemente o CNJ tem feito algumas ações. Aprovou a resolução de adotar perspectiva de gênero nos julgamentos, criou uma comissão para equidade de gênero e também está em andamento um censo para traçar o perfil das pessoas que atuam na Justiça brasileira. Aliada a essa necessidade de representatividade dos membros que compõe o poder judiciário, como é que a senhora avalia a atuação da Justiça nessa temática racial e de gênero? Quais perspectivas pode fazer, se é que é possível fazer, para o futuro? 

É, era até algo que eu ia dizer sobre como trazer a perspectiva da diversidade para dentro do sistema de Justiça. Esses órgãos têm se ocupado de trabalhar, refletir, construir uma perspectiva, julgamento com perspectiva de gênero. Eu penso que um julgamento com perspectiva de raça, não só o julgamento, mas também a atuação ministerial, a atuação da Defensoria Pública extrajudicial com perspectiva de raça e gênero e classe, na verdade a gente tem que buscar um olhar, uma perspectiva interseccional para essas construções, é fundamental. Então, um elemento que nós temos que trabalhar é o letramento racial e antirracista do sistema de Justiça. Não adianta nós termos julgamento com perspectivas de gênero e raça, por meio de resoluções, se na prática, na ponta o sistema de Justiça permanece de olhos vendados para essas questões, as pessoas que atuam diretamente no sistema de Justiça. E eu digo isso com base no caso Simone Diniz, que foi um caso da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cujo relatório é de 2006, e nesse relatório a Comissão Interamericana de Direitos Humanos vai dizer que o sistema de Justiça brasileiro é institucionalmente racista. Porque, embora a legislação antirracista tenha evoluído, esse sistema de Justiça aplica essa legislação. Se torna condescendente com a prática de racismo, por exemplo. Então, é muito importante que haja de fato esse letramento antirracista dos membros do sistema de justiça, aliado às outras questões que eu falei de composição, de respeito à Constituição, enfim. 

 

Acredita que já é possível vislumbrar algum avanço nesse sentido, principalmente aqui na Bahia, a senhora que atua junto ao Ministério Público. Já tem percebido algum avanço nesse sentido? 

Há avanços. A Lei Maria da Penha impulsionou a reorganização do sistema de Justiça, com a criação de Varas especializadas, faz com que juízes, juízas, promotores, promotores, defensores, defensoras, a advocacia em si, se debrucem sobre o assunto para que essa legislação consiga realmente ser concretizada. E o mesmo digo em relação à questão racial, nós evoluímos sim, evoluímos. Eu tenho dito que as cotas raciais são um pequeno, porém firme passo rumo a essa justiça racial. E isso tem impactos também na própria composição do sistema de Justiça, porque hoje no Brasil todos os órgãos do sistema de Justiça possuem concursos públicos com cotas raciais. Então, esse sistema de cotas traz essa diversidade ou pretende pelo menos trazer essa diversidade para o sistema de Justiça, e quando nós fazemos a diversidade não são apenas corpos negros, indígenas, quilombolas que estão ocupando aquele espaço, são vivências, são outras experiências, são outras perspectivas de vida que vão também ali sendo absorvidas por esse órgão que recebe essas pessoas. Agora, essa política pública precisa ser monitorada. Nós ainda temos muitos casos de pessoas brancas, socialmente brancas, que ingressam nas vagas reservadas para pessoas negras e trazem jurisdicionalidade dessa política pública, que não consegue alcançar seu objetivo, seja um incremento da presença negra nesses espaços - negra aqui falando das cotas raciais especificamente para pessoas negras, embora a gente tenha aí perspectiva de ampliação também. 

 

Embora o judiciário lide diretamente com lei, execute, mas diretamente não constrói essas leis. Como é que essa relação acredita que pode ser melhorada entre o Judiciário e o Legislativo, no sentido de construção dessas leis e ampliação de direitos mesmo?

O Ministério Público impulsiona políticas públicas. A partir do momento que ele fiscaliza a concretização ou não da própria legislação, do próprio direito, ele está ali sim funcionando políticas públicas. Então não é raro que o Ministério Público se articule no Brasil afora, e na Bahia não é diferente, com o Legislativo, com membros do Legislativo para propor, impulsionar, trazer sugestões de projetos de lei que venham a concretizar melhor a constituição, as outras leis já vigentes. Então, é um trabalho de articulação interinstitucional, claro que respeitando as competências de atribuições de cada órgão, é fundamental. O fato de cada órgão ter suas competências não impede que tenhamos aí essa articulação respeitando seus princípios dos freios e contrapesos. Você tem sua competência, mas também a Constituição traz aí essa forma de controle sempre, nenhum órgão é absoluto e ele pode agir de maneira arbitrária virando as costas para a Constituição, o que visa a Constituição. Então há mecanismos de controle e isso vai ser exercitado também de maneira mais eficiente quando a gente traz uma perspectiva de atuação em articulação interinstitucional. Afinal de conta, nesses órgãos deveriam estar todos voltados para o mesmo objetivo, que é de concretizar o estado democrático de direito, concretizar a nossa democracia, a igualdade, realizar de fato a Constituição brasileira.