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Marca Bahia Notícias Justiça

Entrevista

Procurador Jonas Ratier Moreno - Trabalho Escravo

Por Cláudia Cardozo

Procurador Jonas Ratier Moreno - Trabalho Escravo
Responsável pela Coordenação Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT), o procurador Jonas Ratier Moreno, do Mato Grosso do Sul, conversou com o Bahia Notícias sobre as medidas tomadas pelo órgão para combater o trabalho análogo à escravidão. Ele cita casos emblemáticos, como a de uma das empresas terceirizadas à grife espanhola Zara, que mantinha bolivianos em condições de trabalho escravo no Brasil. A empresa firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) e se comprometeu a reparar a situação. Segundo o procurador, a pobreza no país é a maior causa da existência do problema nos dias atuais. "Os trabalhadores migram de locais onde eles não têm a menor proteção, não têm educação, não têm saúde e não têm oportunidade de emprego. E como não têm oportunidade de educação, eles não têm a oportunidade da qualificação", classificou.


Bahia Notícias: Apesar de ter sido abolida com a Lei Áurea, a gente ainda vê nos dias atuais o trabalho escravo. Por que esta prática ainda persiste no mundo atual?

Jonas Ratier Moreno: São várias as causas destas prática ainda no mundo atual. A primeira dela é a miséria. Estes trabalhadores migram de locais onde eles não têm a menor proteção, não têm educação, não têm saúde e não têm oportunidade de emprego. E como não têm oportunidade de educação, eles não têm a oportunidade da qualificação. O aliciamento por falsas promessas em razão destas condições, a concorrência desleal, a busca por parte do explorador de conseguir produzir, colocar um produto no mercado com menor preço à custa de uma exploração, sai mais fácil, porque se for pelo índice de ações judiciais contra esse explorador, o índice é muito baixo. Então, para ele, às vezes, até compensa essa exploração, porque ele sabe que poderá ser demandada uma operação, fiscalização, que só aparece por lá de vez em quando. Ele acredita nessa impunidade, infelizmente. Mas nós estamos buscando cada vez mais combater essa impunidade com nossa atuação.

BN: Existe alguma diferença entre as diversas tipificações utilizadas como trabalho escravo, trabalho escravo contemporâneo e trabalho análogo ao escravo?

JRM: Não. O trabalho escravo é uma expressão que caiu no gosto popular, porque na verdade são condições em que a lei coloca - tem que deixar muito claro -  são condições de trabalho análogo ao escravo. O trabalho escravo mesmo foi revogado e abolido pela Lei Áurea. Então, o trabalho que nos podemos chamar “trabalho escravo” contemporâneo são estas condições análogas aos de escravos. Como elas estão ainda vigentes, as modernas formas de escravidão, são formas de trabalho escravo contemporâneo.

BN: Nos últimos tempos, temos visto diversas situações de trabalho escravo, como nas confecções e na construção civil. Em quais ambientes esse tipo de exploração se configura com maior intensidade?

JRM: Mais ainda no meio rural. As estatísticas das operações têm demonstrado incidência maior no meio rural, infelizmente. Mas os números têm aumentado no meio urbano, que é a nossa grande preocupação no momento também.

BN: O que o caso Zara ensina para a sociedade brasileira sobre o trabalho escravo?

JRM: Eu até esqueci de mencionar que recentemente a Zara foi flagrada também na Argentina. Ficou constatado trabalho escravo nas oficinas de empresas que prestam serviço para a Zara na Argentina. É importante mencionar o caso da Zara, porque ela chegou perante o Estado brasileiro, perante o Ministério Publico, fiscalização do trabalho e falou assim: ‘Eu quero ajustar minha conduta, eu quero procurar melhorar e garantir a licitude na cadeia produtiva. Meus produtos doravante serão monitorados, sou responsável’. Outra coisa: a Zara se responsabilizou objetivamente pela cadeia produtiva, coisa que, por exemplo, as outras empresas não assumiram, ficam se escondendo atrás daquele contratado, daquele terceirizado, dizendo que não sabiam, não tinha ciência da situação. Mas nós entendemos que ela tinha domínio do fato. Na medida em que ela terceiriza, quarteriza para empresas que não têm idoneidade econômica, ela é responsável. Mas a Zara, nesse caso, veio, inclusive diante da repercussão internacional que o caso teve. Me parece que teve até uma queda no preço das ações. Ela teve um prejuízo econômico, e ela pediu uma ampla negociação, ela celebrou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho e também com a fiscalização do trabalho.

BN: Judicialmente, o TAC encerra o processo?

JRM: Encerra, inclusive, judicialmente o caso Zara. Me parece que não houve nem judicialização do caso. Ficou na esfera administrativa, mas o TAC tem garantia, se for o caso, inclusive para execução judicial.

BN: Recentemente tivemos na Bahia a apreensão de 17 trabalhadores em situação detrabalho escravo em construtoras. Isso é uma tendência?

JRM: Infelizmente a construção civil está tentando diminuir o custo, só que quem esta pagando o preço é o trabalhador. Ou seja, está havendo uma precarização. Esta terceirização ilícita representa uma precarização dos direitos dos trabalhadores para conseguir ajustar o preço que a construtora se propõe a vender aquele produto. Ela quer concorrer no mercado e, infelizmente, como diz o ditado: ‘a corda vai quebrar pelo lado mais fraco’, ou seja, a custa da dignidade das garantias dos trabalhadores.

BN: O Brasil, nos últimos tempos, tem recebido uma grande demanda de imigrantes à procura de trabalho. Como é que agora o Brasil vai se portar, diante desta situação, para não cair no risco do trabalho escravo ou regularizar a situação dos imigrantes?

JRM: Na verdade, o Brasil é um país receptivo e não pode mudar. O Brasil será sempre receptivo. É da nossa cultura. Temos nossos ancestrais que migraram. Quem aqui não é descendente de um imigrante que veio para formar este país? Logicamente, agora o Estado brasileiro vai ter atenção com relação a esta imigração, como o caso dos haitianos. O Estado brasileiro está buscando, através do Sistema Nacional de Emprego, pelo que eu tenho notícia, de colocação destes trabalhadores no mercado formal de trabalho.

BN: Como é que o MPT tem agido especificamente para combater a prática do trabalho escravo?

JRM: De estrangeiros?

BN: Estrangeiros e nacionais.

JRM: Primeiramente, temos participado das operações, instaurado as investigações e, quando o violador não ajusta a sua conduta, nós temos entrado com as ações judiciais e trabalhistas. A Justiça do Trabalho tem recebido estas ações e tem acolhido os pedidos do Ministério Publico do Trabalho de proteção destes trabalhadores. Principalmente para reprimir as condutas que ali estão configuradas, reiteradas muitas vezes. É o caso clássico da Lima Araujo, que foi publicizado há muito tempo e o Tribunal Superior do Trabalho (TST), recentemente julgou, em última instância, e a condenou em R$ 5 milhões de por danos morais coletivos. Então, o Ministério Público do Trabalho tem todos os instrumentos e tem usado todos os instrumentos para combater a prática do trabalho escravo.

BN: Uma das ações do MP é a adoção do TAC. O TAC é efetivo para regularizar a situação?

JRM: Um ponto importante que nós buscamos sempre é regularizar através da via administrativa, porque o judiciário já está com muitas demandas. As demandas que vão para o judiciário são aquelas em que há resistência do infrator em relação à multa. Quando o infrator chama o Ministério Público, chega e fala ‘estou aqui, quero ajustar minha conduta, não quero mais incidir nesta conduta. Quero repará-la’, não cabe ao Ministério Público ajuizar a ação se este infrator quer se adequar às normas trabalhistas. Então, é de interesse do Ministério Publico em ajuizar uma ação, se a lei faculta a aplicação do TAC, que é um instrumento reconhecido legalmente na própria Lei da Ação Civil Pública no Art. 876 da Convenção de Leis Trabalhista (CLT) e reconhecido como um instrumento útil para que sejam corrigidas essas ilegalidades.

BN: É uma ferramenta de conciliação?

JRM: É, chega a ser uma ferramenta de conciliação, porque nós deixamos também de desaguar muitas ações. Eu, por exemplo, tive um caso que tramitava na Justiça do Trabalho em Campo Grande - mas é de outra seara, para você ver o valor do TAC - de um caso que tinha 90 ações na Justiça do Trabalho em Campo Grande de um grande hospital e em um TAC só todas estas ações foram arquivadas, as partes vieram ao Ministério Público ajustar a conduta e depois noticiaram nos processos em que a cessão  já tinha sido feita através do TAC.

BN: Que resposta o senhor daria aos boatos de que existe uma 'Máfia do TAC'?

JRM: Olha, você quem está me dando estas notícias. O TAC é um instrumento legal, instalado em cima de uma investigação, ninguém faz TAC se não tiver uma causa. Uma causa é decorrente de uma constatação de uma ilegalidade, como o caso do trabalho escravo absolutamente. Então, o que existe é realmente a vontade do infrator, daquele que comete a ilegalidade de ajustar perante o Ministério Publico a sua conduta, ele também pode não ajustar, e criar de demanda na Justiça do Trabalho. Então eu acho que a informação que te passaram não condiz com a realidade.

BN: Como funciona a punição por danos morais coletivos, e por que muitas vezes esses recursos são destinados para instituições beneficientes e não diretamente para o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT)?

JRM: A lei fala em reparação da sociedade, com data, nome, idade e local. Se vocês olharem a lei, ela fala nisso.

BN: É a CLT que fala isso?

JRM: Não, é a Lei da Ação Civil Pública. Isso é primordial, é reparar aquela comunidade afetada. Nosso direcionamento para esta reparação, para mim, ela vem em primeiro lugar, quando não é possível isso deixa como fundo mais adequado ou Fundo de Amparo do Trabalhador, mas é um fundo que está lá, não é imediato o que é mais imediato é a reparação dessa comunidade afetada do trabalhado. As vezes, nós destinamos para um hospital em que cuida de trabalhadores, cuida dos filhos dos trabalhadores. No caso das associações que protegem as crianças com câncer, que dão aparo às crianças com câncer. Quem frequenta? São os filhos dos trabalhadores, que dependem deste serviço prestado pelas associações. Então, é muito importante que ter isto em mente: a lei é quem faculta do Ministério Público do Trabalho buscar, e aí é Ministério Público em geral, uma reparação para a comunidade local afetada. E depois vêm os fundos, como fundo dos direitos difusos, mas no caso dos direitos  dos trabalhadores, mas o mais adequado ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) que é o fundo de desamparo do trabalhador, mas isto se não for possível uma reparação local.

BN: Em que momento a empresa pode responder criminalmente pela exploração do trabalho escravo?

JRM: Não, os responsáveis. O tipo penal reprime a prática por alguém, então isso é muito importante. Há teorias de uma proposta de mudanças do Código Penal, está em estudo, mas no momento são os responsáveis. Aí vem a teoria de que o Supremo acaba de agasalhar, para aqueles que alegam que não são responsáveis pelas empresas, direito de vigência das empresas, que falam que tinham repassado para terceiros para fazer de conta que não é com ele.

BN: O Estado também pode ser responsabilizado pela facilitação do desenvolvimento do trabalho escravo?

JRM: O estado brasileiro já foi demandado no caso do trabalhador Zé Pereira, que foi um marco pelo acordo na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Houve um acordo e o governo brasileiro mandou um projeto de lei para o congresso que aprovou a reparação do caso chamado Zé Pereira. Temos outros casos na Comissão Interamericana e o governo brasileiro está sendo demandado nesses fóruns internacionais.

BN: Se o TAC é efetivo para evitar reincidência das empresas e há uma lista suja, quais são os direitos dos trabalhadores...

JRM: Olha, nós procuramos que o TAC seja efetivo, com valores consideráveis para que o infrator pense duas vezes antes de voltar com a prática. Mas também não podemos impedir que ele reincida algumas vezes. Ele aposta também que a fiscalização não volte lá, como diz o ditado: ‘Que o raio não cai duas vezes no mesmo lugar’. Mas raio cai. A fiscalização vai voltar lá, vai monitorar para ver se ele está cumprindo o TAC. Inclusive o monitoramento da lista suja, outro instrumento importante que é monitorada, para sair do cadastro dos empregadores que é chamada de lista suja, vai a fiscalização para ver se ele está cumprindo. Então, não é assim, e nós do Ministério do Trabalho temos uma orientação da Corregedoria para que a gente em certo período verifique condições afetadas no TAC para ver elas estão sendo cumpridas.

BN: Quais são os direitos dos trabalhadores resgatados e como é que eles são reinseridos no mercado de trabalho?

JRM: Olha, o primeiro direito dele é romper com aquela situação, recebimento dos seus direitos trabalhistas, inclusive incluímos os danos morais individual, o seguro desemprego para trabalhadores resgatados. Estes são os imediatos na hora do resgate. No Ministério Público do Trabalho, particularmente, nós estamos desenvolvendo projetos e um deles é o ‘Resgatando a Cidadania’ que é um projeto de inclusão destes trabalhadores através da qualificação para que eles não voltem a reincidir, mas este é um projeto que esta e desenvolvimento. Teve o caso que é um paradigma para nos de sucesso, por enquanto, que foi desenvolvido em Cuiabá, muitos trabalhadores foram treinados e requalificados em Cuiabá e estão na obra da Copa em Cuiabá. É um caminho, com certeza é um caminho, mas eu acho que o Estado brasileiro tem que também se apresentar com políticas públicas para atacar as causas. E quais são as causas? É lá nos locais, por exemplo, num estado que é campensíssimo que é o Piauí, Maranhão também, que a negação dos direitos mais básicos destes trabalhadores, que é a educação, saúde, oportunidade de emprego. Eu acho que essas são as causas para o deslocamento destes trabalhadores para outros lugares para serem explorados.