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As mulheres e a Seguridade Social brasileira

Por Antônio de Pádua Melo Neto

As mulheres e a Seguridade Social brasileira
Foto: Acervo pessoal

Todo dia 08 de março é um marco para celebrar a árdua e perene luta das mulheres pela efetivação dos seus direitos civis, políticos e sociais. O nosso moderno contrato social, plasmado na Carta Constitucional de 1988, estabelece, como um dos objetivos da nossa República, a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV) e define, como um direito fundamental e uma das cláusulas pétreas, a igualdade de direitos entre homens e mulheres (art. 5º, I). 

 

Na construção dos alicerces da nossa democracia, uma das formas encontradas para garantir, defender e promover o bem-estar social das mulheres brasileiras se processou e se processa a partir da instituição e consolidação da Seguridade Social (art. 194), formalizando princípios de universalidade, uniformidade, equidade, entre outros. A Seguridade Social brasileira é composta por três gigantescos sistemas de políticas públicas, com inúmeros pontos de interconexão entre si: a saúde, a previdência e a assistência social. Para se ter uma ideia panorâmica da envergadura dessas políticas sociais, a Previdência Social realiza despesas equivalentes a 14% do PIB brasileiro, beneficiando mais de 34 milhões de pessoas; o SUS, nas três esferas federativas, realizando despesas de quase R$ 400 bilhões, beneficia diretamente, através de seus serviços e ações, metade da população brasileira.

 

A partir de informações compiladas e publicadas pelo projeto Beneficiômetro da Seguridade Social Brasileira, gerido pelo IPEA, selecionaremos apenas alguns dos inúmeros benefícios ofertados às mulheres brasileiras para a garantia e promoção do seus direitos fundamentais e do seu bem-estar social em diferentes etapas do ciclo de vida. Comecemos pelo SUS, a partir de dados disponíveis na Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE): 2/3 das gestantes brasileiras (66,2%), em 2019, realizaram ao menos uma consulta de pré-natal na rede pública, para seis consultas ou mais, como é recomendado pela OMS, pouco mais da metade das gestantes brasileiras (53,8%) foram atendidas no SUS. Ainda tendo como referência o ano de 2019, observa-se que, no SUS, foram realizados 70,3% dos partos, 51,2% dos exames preventivos para câncer de colo do útero (para mulheres com 25 a 64 anos), 52,8% das mamografias (para mulheres com 50 a 69 anos, após solicitação médica).

 

A Previdência Social é composta de diversos benefícios contributivos (com diferentes regimes de acesso), semicontributivos e assistenciais. Foquemos em apenas dois deles: o salário-maternidade, que garante licença remunerada de 120 dias às trabalhadoras (empregadas, avulsas, contribuintes individuais e seguradas especiais) gestantes ou adotantes (e outros casos previstos em lei) e a aposentadoria rural por idade (agricultor familiar, pescador artesanal e indígena, empregado rural, trabalhador avulso e contribuinte individual rural). Em 2018, o RGPS pagou, direta e indiretamente, 1,4 milhão de salários-maternidade, alcançando uma “taxa de cobertura” aproximada de 47,6%, em relação aos 2,73 milhões de nascimentos observados no mesmo ano. 

 

Os números disponíveis no Anuário Estatístico da Previdência Social mostram, para o exercício de 2021, que as mulheres representavam 61,12% do total de beneficiários do programa de aposentadoria rural, recebendo pouco mais de R$ 4,4 bilhões em valores agregados. Quase 1⁄3 das mulheres beneficiárias (31,98% do total) possuíam até 64 anos de idade (a idade mínima de acesso é de 55 anos, para as mulheres). A aposentadoria rural por idade é a principal forma de acesso à proteção previdenciária no campo, representado 93,27% do total: as aposentadorias rurais por tempo de contribuição representam apenas 0,34% e as aposentadorias por invalidez representam 6,38%. A institucionalização da aposentadoria rural por idade, ao beneficiar mulheres camponesas em sua maioria, foi uma forma encontrada, no nosso contrato social, de retribuir o esforço e o empenho realizados na dura labuta diária para ofertar uma parte considerável dos bens-salário da cesta de consumo (popular ou não) alimentício nacional. Sem o trabalho produtivo de milhões dessas mulheres, as condições para a reprodução social (material e simbólico) das classes trabalhadoras brasileiras seriam, simplesmente, impossíveis.

 

Para a assistência social, consolidada no SUAS, há um conjunto extremamente relevante de benefícios monetários e não-monetários e de serviços distribuídos entre a proteção social básica e a proteção social especial. Foquemos no Bolsa Família e no PAEFI (Serviço de Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos). Os dados de fevereiro de 2024 mostram que 83,3% das famílias beneficiárias do PBF possuem uma mulher (17,5 milhões de mulheres, ao todo) como responsável familiar (pelo recebimento e administração do benefício), com repasses mensais totais superiores a R$ 14 bilhões. No âmbito do PAEFI, os atendimentos nos CREAS para mulheres adultas vítimas de violência intrafamiliar apresentaram uma preocupante trajetória de crescimento entre 2016 e 2022 (saltaram de 28 mil para 43 mil), garantindo uma taxa de cobertura do atendimento, ainda muito insuficiente, de 50% a 45% das notificações de violência registradas no SUS (SINAN).

 

Construir políticas públicas de bem-estar social nunca foi tarefa fácil. Dezenas de milhões de vidas foram perdidas na luta para derrotar as ditaduras fascistas do século XX e abrir caminho para a consolidação de diferentes regimes de bem-estar e seguridade social em diversas nações ao redor deste planeta. Construir um Estado de Bem-Estar social contemporâneo, em um contexto global de austeridade fiscal, na periferia do sistema-mundo capitalista, em uma nação marcada por brutais desigualdades de gênero, raça e classe como Brasil, é muito mais difícil. Algumas peças e engrenagens de bem-estar foram postas a funcionar após a promulgação da CF/88, graças, principalmente, à luta de milhões de brasileiras que se cansaram da espoliação das suas vidas e dos seus trabalhos tanto na relação salarial quanto na esfera doméstica. Darcy Ribeiro se referia à formação do Brasil como um “moinho de gastar gente”, mas esse país foi, antes de tudo, um “moinho de gastar mulheres”. Nossa seguridade social, aos trancos e barrancos, “arranca água” desse moinho satânico.

 

*Antônio de Pádua Melo Neto é integrante da carreira de Analista de Políticas Sociais do Governo Federal, lotado na Superintendência Regional do Trabalho na Bahia (MTE)

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias