Guindaste Antropofágico Gregoriano
Desde a fundação da cidade, seu sítio histórico, hoje denominado Pelourinho, a cidade de Salvador serviu de fortaleza para proteção de ataques tanto dos nativos bravos índios como de invasores estrangeiros. Salvador sempre foi estratégica por ter sido o porto mais importante do hemisfério sul até o Séc. XIX, e por isso desejada por diversas nações.
Parar ascender desde o antigo Cais até a Cidade Alta, diversos caminhos foram trilhados, como a célebre Ladeira da Preguiça, que fica na região, próxima da primeira ermida que deu lugar a Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, e recebeu este nome por ser muito longa e íngreme, provocando muitas das vezes paradas ao longo do caminho aos seus transeuntes. Tal via foi homenageada pelo cantor e compositor brasileiro Gilberto Passos Gil Moreira (n. 1942) na canção “Ladeira da Preguiça” no álbum “Cidade do Salvador” em 1973.

Imagem de Gregório de Mattos, gerada por IA pelo autor
Credita-se ao polímata grego Arquimedes de Siracusa (287 – 212 a.C.) o registro dos primeiros guindastes e elevadores por volta do ano 236 a.C., que funcionavam por meio de tração animal ou ainda escrava, alguns baseados em planos inclinados. Tal crédito foi dado pelo arquiteto romano Vitrúvio (c. 70 a.C. – c. 15 d.C.), este tambem célebre ao propor modificações em tais dispositivos.
Desde 1610 há registros de engenhosos aparatos de carga na íngreme cidade do Salvador, famosa por sua escarpa, como os Guindastes da Fazenda e o dos Padres da Companhia de Jesus, a içar mercadorias nas encostas que levam ao monte da cidade alta, no Pelourinho, estes movidos por tração animal ou escrava. Ao menos dois deles localizavam-se próximo de onde se situa hoje o Elevador Lacerda e a atual praça, conforme deixam claro a gravura de 1627 do pintor alemão Abraham Hogenberg (1578 - 1653), que consta hoje no acervo do Instituto Sociocultural Flávia Abubakir. Em algum momento, por volta de 1632, o guindaste mais novo foi arrematado pelo avô do advogado e poeta brasileiro Gregório de Mattos e Guerra (1636 - 1696), o ferreiro e mestre de obras português Pedro Gonçalves de Mattos (? – c. 1659), egresso da Vila de Guimarães que desembarcou na Bahia em 1626 já viúvo de Margarida Álvarez de Mattos (? – c. 1625) e cristão-velho. Pedro de Mattos trouxe seu jovem filho, Gregório de Mattos (c. 1615 – ?), e ambos casaram com viúva e filha de mesmo nome: Maria da Guerra I (? – c. 1659, também egressa da Vila de Guimarães) e Maria da Guerra II (? – c. 1662), herdando desta nova família fazendas e se tornando ricos senhores de engenhos. Particularmente, Pedro de Mattos enriqueceu rápidamente com o transporte de cargas entre as cidades Alta e Baixa.
Já um outro guindaste foi descrito pelo navegador francês François Pyrard (1578 - 1621), e ficava próximo de onde hoje se encontra o Plano Inclinado Gonçalves. Gravuras de 1624 como a dos desenhistas e cartógrafos holandeses Claes Janszoon Visscher (1587 - 1652) e Hessel Gerritsz (c. 1581 - 1632) sobre “S. Salvador. Baya de Todos os Sanctos”, não deixam dúvidas sobre a presença de alguns destes extraordinários maquinários.
A pena ferina do antropofágico poeta barroco da boca de brasa gregoriano, neto de ferreiro pobre que se tornou rico em terras, engenhos de açúcar e engenhosa máquina mercante de potente guindaste ainda inspira obras como a do cantor, escritor e produtor brasileiro Caetano Emanuel Viana Teles Veloso (n. 1942), que musicalizou o poema gregoriano dedicado à cidade em “Triste Bahia”, no álbum Transa de 1972.
Assim como o arrojado empreendimento lacerdiano, primero do mundo e descendente dos primeiros guindastes a carrear mercadorias e almas para cima e para baixo todos os santos dias, se mantem enquanto símbolo da engenhosidade, ousadia e pujança baiana, a contemplar a bela Bahia de Todos os Santos.
*Marcio Luis Ferreira Nascimento é professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química da UFBA e membro do Instituto Politécnico da Bahia
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À Bahia Gregório de Mattos [1]
Triste Bahia! Oh quão dessemelhante Estás, e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, Rica te vi eu já, tu a mi abundante.
A ti trocou-te a máquina mercante, Que em tua larga barra tem entrado, A mim foi-me trocando, e tem trocado Tanto negócio, e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente Pelas drogas inúteis, que abelhuda Simples aceitas do sagaz Brichote.
Oh se quisera Deus, que de repente Um dia amanheceras tão sisuda Que fora de algodão o teu capote! |
Triste Bahia Caetano Veloso / Baseada na obra de Gregório de Mattos [2]
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante… Estás e estou do nosso antigo estado Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado Rico te vejo eu já, tu a mim abundante
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante A ti tocou-te a máquina mercante Quem tua larga barra tem entrado A mim vem me trocando e tem trocado Tanto negócio e tanto negociante
Triste, oh, quão dessemelhante, triste Pastinha já foi à África Pastinha já foi à África Pra mostrar capoeira do Brasil Eu já vivo tão cansado De viver aqui na Terra
Minha mãe, eu vou pra lua Eu mais a minha mulher Vamos fazer um ranchinho Todo feito de sapê Minha mãe, eu vou pra lua E seja o que Deus quiser
Triste, oh, quão dessemelhante, triste Ê, ô, galo cantou O galo cantou, camará Ê, cocorocô, ê cocorocô, camará Ê, vamo-nos embora, ê, vamo-nos embora camará Ê, pelo mundo afora, ê, pelo mundo afora camará Ê, triste Bahia, ê, triste Bahia, camará Bandeira branca enfiada em pau forte…
Afoxé leî, leî, leô…
Bandeira branca, bandeira branca enfiada em pau forte… O vapor da cachoeira não navega mais no mar…
Triste Recôncavo, oh, quão dessemelhante, triste Maria, pegue o mato é hora… Arriba a saia e vamo-nos embora… Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora…
Oh, virgem mãe puríssima… Bandeira branca enfiada em pau forte… Trago no peito a estrela do norte Bandeira branca enfiada em pau forte… Bandeira… |
[1] In: MATTOS, G. Triste Bahia – Seleção de Poemas de Gregório de Matos (Breve Companhia). Editora Companhia das Letras, São Paulo (2013) 47 p.
[2] In: VELOSO, C. Transa. [S.I.]. Chappell’s Recording Studios, 1972. 1 disco LP, Faixa 3 (9 min 44 s).
