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Notícia

Crítica do filme Irmã Dulce

Por Rodrigo Meneses, colaboração para o Bahia Notícias

Crítica do filme Irmã Dulce
Rodrigo Meneses fala sobre o filme baseado na vida do Anjo Bom da Bahia
Muito do cinema nacional recente tem sido dedicado a biografias. E com grandes nomes, entre as histórias a serem contadas neste continental país, certamente um de imenso destaque não poderia ficar de fora: Irmã Dulce. E em sua trajetória para se tornar não só santa, mas a primeira brasileira a ganhar o status de “santo” pelo Vaticano. Muitas pessoas se lembram de suas aparições. Outras por referências na igreja. Ou até por conta das Obras Sociais de Irmã Dulce e o Hospital Santo Antônio. Ou da eterna lembrança da imprensa local. De alguma forma, todo brasileiro já ouviu falar da figura iluminada conhecida como Anjo Bom da Bahia.  
 
“Irmã Dulce” conta a vida da religiosa, desde sua infância, sua ascensão como samaritana, ao expor sua frágil vida em prol dos pobres até o seu primeiro encontro com o Papa João Paulo II. Escrito por L. G. Bayão, a trama começa com o dia em que a pequena Maria Rita (Sophia Brachmans), acompanhada de sua tia Madaleninha (Aicha Marques), transita por uma região devastada pela pobreza do subúrbio com um saco de pães e vendo todo o desespero dos necessitados por um mísero pedaço de comida. Aí acontece a iluminação responsável pela iniciação na igreja e sua infindável vontade de ajudar os pobres e inválidos. Então vemos a jovem Maria Rita se tornar Irmã Dulce (Bianca Comparato), nome em homenagem à sua mãe (Glória Pires). Aos trancos e barrancos com sua superior, Madre Fausta (Malu Valle), no convento de Santo Antônio em Salvador e desde cedo mostrando fragilidade física, onde percebe a presença do pequeno João (Lisandro Oliveira), doente e abandonado do outro lado da rua em frente ao convento e resolve ajudá-lo. Começava ali o início da jornada em prol dos miseráveis com muito amor, solidariedade e justiça.
 
O roteiro de Bayão busca condensar uma vida de muitos casos, a luta por apoio e doações para seus protegidos em apenas noventa minutos, o que confere também uma relação um pouco apática com a bela obra da freira mais conhecida do país. Claro que estão no filme os episódios da casa que é ocupada graças a um assaltante; o aval do prefeito; sua transição para o convento e as idas e vindas com João passando pela fase adulta (Regina Braga como Dulce e Amaurih Oliveira como João); o famoso cuspe na mão numa feira de rua, entre outros. Naturalmente, se era um filme pretendido a ter noventa minutos, deveria ter escolhido um foco. Ou sua fase mais jovem e sua verve pelos desprovidos de condições ou sua fase mais madura, com o seu nome em crescente no povo e na mídia, com o assédio dos políticos buscando se ancorar em sua imagem e o tão icônico encontro com o papa. Entende-se que retratar uma vida entregue em mais de cinco décadas de combate à pobreza, merecia, no mínimo, duas horas bem contadas.
 


Nesta mesma sinergia errônea, o diretor Vicente Amorim (“Um Homem Bom”, “Corações Sujos”, “O Caminho das nuvens”) parece perdido no próprio projeto, pegando um roteiro repleto de furos e sequências soltas e sem nexo de história, voltado para um público leigo, apenas por ter Irmã Dulce a todo o tempo na projeção. Mas deixa tantas pontas soltas, que não vemos o movimento católico de assistência criado por Irmã Dulce, sendo apenas desmembrado e lembrado por uma cena onde o repórter pergunta sobre assistencialismo ligado à política. Também é culpa do diretor forçar a emoção em algumas poucas partes do filme quando toda a história daquela grande mulher por si só é emocionante. Não é necessário tornar o filme um apelo sem fim ou apenas em alguns trechos, até no elo comum com o público com o cuspe na mão que surge tão abruptamente que o deixa sem tempero algum entre as cenas que a separam. Parece que faltou coragem do diretor em muitos momentos, como o encontro com o papa que poderia ter sido interpretado por algum ator com semelhança, como o próprio cinema faz e um diretor de seu porte deveria saber. 
 
Difícil é como uma produção tendo um orçamento de dez milhões de reais, considerando que parte de onde a história se passa ainda é um grande centro histórico, faz uma reprodução de época tão escondida, ficando relegada a planos muito fechados, não fugindo muito de portas, placas – como o plano estourado e até visto como inexperiente onde se mostra a placa do Convento de Santo Antônio. Há alguns erros de continuidade e reprodução gritantes como, por exemplo, basicamente numa mesma sequência, termos um carro trinta anos à frente de uma ambulância.
 
Ainda no quesito de reprodução histórica, temos como parte de personagem e maquiagem, perceber que enquanto duas atrizes fizeram Irmã Dulce, uma fez a Madre Fausta, nome que mais acompanhou a famosa freira em sua vida religiosa e social, não tendo um exato trabalho de manutenção do tempo que passa especialmente no rosto da mesma. Outra questão é a Irmã Dulce mais jovem já frágil e uma mais envelhecida com mais presença corpórea cortando justamente para imagens de arquivo e vermos por exemplo, a espessura do seu braço, exibem uma dissonância relativa muito grande da produção. 
 

 
 
Em contrapartida, reproduz bem momentos como a multidão que recebe o Papa; a entrada inadvertida de Dulce no terreiro de Mãe Menininha; os momentos entre irmãs pelo convento e Dulce no subúrbio e por palafitas. O trabalho de figurino é eficiente, recria bem vestes de personagens como João, Dulcinha (Zezé Polessa) e ajuda a desenhar coadjuvantes, como Neco (Fábio Lago). Na trilha sonora, a força e a emoção da jornada de Irmã Dulce não abusa da intuição narrativa, como muito acontece em cinebiografias, em especial no cinema brasileiro.
 
Ponto forte do filme, Bianca Comparato, diriam os baianos, parece ter “baixado o santo”. Ou seria santa. É louvável o trabalho expressivo, do olhar doce e carregado de amor, da voz ressecada, leve e baixa devido aos pulmões frágeis, do jeito de andar simplório e passivo menos quando precisava literalmente correr para ajudar e também de transmitir os sentimentos que Dulce transmitia e absorvia. Infelizmente não se pode dizer o mesmo de Regina Braga. A atriz de gabarito global parece não ter feito o download da personagem e apenas busca imitar a Irmã Dulce. O problema é justamente ser mais velha, mais madura, e não ter exibido uma maior apatia física e fragilidade do Anjo Bom. Logo, parece ser uma nova pessoa em relação a sua versão jovem. Sempre maravilhoso, Gracindo Jr. se entrega de corpo e alma ao “paizinho” como é carinhosamente chamado Dr. Alberto, figura que sempre apoiou e compreendeu aos poucos a santidade de sua filha. Malu Valle buscou mesmo na firmeza a doçura de Madre Fausta, no início uma pessoa que muito cobrava de Dulce por ser sua superior, mas logo se tornaram amigas e parceiras de trabalho. Lisandro e Amaurih competem forças, sendo o primeiro uma versão mais alegre e ainda ingênua apesar da miséria presenciada. Glória Pires aparece muito pouco, basicamente na mesma cena, sendo oficialmente a mãe de figuras importantes do Brasil no cinema.
 
“Irmã Dulce” é um filme que precisa ser assistido pela importância de sua personagem até para os dias de hoje que vivem com uma violência pluralizada em crescente e onde poucos realmente se importam com os outros, especialmente na correria do dia-a-dia. Possui muitas falhas e se mostra um equívoco fílmico e de produção. Na melhor descrição, um desperdício de história. Mas, é Irmã Dulce. Não é apenas um compromisso de fé, mas quase um ato de civilidade e humanismo conferi-lo. 
 
IRMÃ DULCE. 2014. DE: VICENTE AMORIM. COM: BIANCA COMPARATO, REGINA BRAGA, GRACINDO JR., LISANDRO OLIVEIRA, AMAURIH OLIVEIRA, MALU VALLE, ZEZÉ POLESSA, IRENE RAVACHE, FÁBIO LAGO, LUIZ CARLOS VASCONCELOS, SOPHIA BRACHMANS, GLORIA PIRES, AICHA MARQUES. DOWNTOWN FILMES. DRAMA. 90 MIN. EM CARTAZ.


Rodrigo Meneses é crítico de cinema do site EmCenaAção - http://www.emcenaacao.com.br/ e http://www.facebook.com/portalemcenaacao.
 
A crítica do filme também está no disponivel neste link.