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Juiz na Bahia não vê trabalho escravo e nega indenização a doméstica sem salário desde os 7 anos

Por Redação

Juiz na Bahia não vê trabalho escravo e nega indenização a doméstica sem salário desde os 7 anos
Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil

O juiz do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia (TRT-BA), Juarez Dourado Wanderlei, negou indenização a uma mulher de 53 anos que,aos 7 anos, teria começado a trabalhar como empregada doméstica em uma casa de família em Salvador. Ela passou mais de quatro décadas na residência, sem remuneração. 

 

O Ministério Público do Trabalho (MPT), autor da ação, vai recorrer da decisão, publicada no começo do mês. A defesa da família considerou “adequada” a determinação.

 

"Em seu âmago, naquela casa, [ela] nunca encarnou a condição essencial de trabalhadora, mas de integrante da família que ali vivia, donde se infere que, sob o ponto de vista do direito, jamais houve trabalho e muito menos vínculo de emprego", argumentou o juiz Wanderlei.

 

“É aquela velha história de dizer que a trabalhadora pertence ao seio familiar e, com isso, negar a ela seus direitos", pontuou o  coordenador estadual de enfrentamento ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo na Bahia, Admar Fontes Júnior, à Repórter Brasil.

 

Ele diz que, enquanto os filhos biológicos dos patrões estudaram até a graduação, a trabalhadora nem sequer aprendeu a ler e escrever.

 

De acordo com a ação movida pelos procuradores do MPT, a qual o veículo teve acesso, a empregada doméstica foi entregue pelo próprio pai à família Cruz, quando ainda era uma criança. A mulher trabalhou para eles por 44 anos.

 

Ao longo desse período, além de fazer todo o serviço doméstico, ela também teria cuidado dos filhos dos patrões, em jornadas de até 15 horas diárias. Segundo o MPT, ela não tinha direito a férias nem a descanso semanal.

 

Em 2021, auditores fiscais do governo federal classificaram a situação como trabalho escravo. Na sequência, teve início o processo judicial movido pelo MPT.

 

A ação pedia que a trabalhadora recebesse os salários retidos ao longo de 44 anos de serviços prestados, além de benefícios nunca pagos, como FGTS, descanso remunerado e 13º. No total, o MPT cobrava uma indenização de R$ 2,4 milhões.



Conforme Admar Fontes, que acompanhou a empregada doméstica no dia da fiscalização e prestou assistência nos meses seguintes, "ela se assustou quando soube que o juiz não considerou que ela trabalhava na casa da família".

 

Para o advogado Dielson Fernandes Lessa, que representa a família Cruz no processo, "a decisão restabelece a justiça neste momento".

 

A família entende que foi vítima de uma calúnia, porque nunca existiu esse tipo de tratamento [trabalho escravo]. A relação entre a suposta vítima com a família é de mãe e filha, de pai e filha", comentou o advogado Dielson Fernandes Lessa, em entrevista por telefone à Repórter Brasil.

 

Em depoimento à Justiça, a trabalhadora disse que "nunca foi maltratada", "que não aconteceu nada na casa que não tenha gostado", e que inclusive "retornaria para a casa [da patroa] a passeio". As declarações foram usadas pelo juiz para determinar que a relação era familiar, e não de trabalho.

 

Para Admar Fontes Júnior, o episódio não pode ser considerado um caso isolado. "Todas as trabalhadoras domésticas que foram resgatadas relatam esse sentimento, que elas pertenciam ao seio familiar. Mas quando a gente pergunta mais detalhes, ouve que elas tinham um quarto nos fundos de casa, sem luz natural, não sentavam à mesa para comer com o restante dos moradores da casa e por aí vai", ressalva.

 

O RESGATE

Em 2021, Tatiana Fernandes, auditora fiscal do Trabalho, participou da operação de resgate da empregada doméstica. "A lei configura o que é trabalho escravo de forma muito objetiva. Não é uma condição que os auditores fiscais interpretam", afirma.

 

Nesse caso específico, a fiscalização apontou a presença de três elementos para caracterizar o trabalho escravo: 

 

  • Jornada exaustiva, configurada pelo expediente de 15 horas diárias, com intervalos curtos entre um dia e outro, e sem direito a repouso e férias.

  • Condições degradantes, que também apareceram no relatório, segundo Fernandes. "Os direitos mais elementares não estavam preservados: ela não tinha liberdade, não tinha privacidade, não tinha como gerir a própria vida", explica a auditora. A trabalhadora dormia em um quarto com os netos da patroa, de quem também chegou a cuidar, quando os filhos da dona da casa ficaram adultos. Mesmo as saídas ordinárias, como idas ao mercado ou à padaria, eram controladas -- a trabalhadora ouvia reclamações se demorasse.

  • Trabalho forçado, situação identificada pelos auditores. "Ela não tinha a menor condição de sair daquela situação", afirma Fernandes, já que a trabalhadora não tinha recursos financeiros para se manter fora da casa. Ela jamais teve conta bancária, por exemplo.

 

Os resgates de trabalhadoras domésticas começaram a ficar mais frequentes no Brasil depois de 2017.