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Artigo

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A Festa do Bonfim nasceu no São João

Por Nelson Cadena

Foto: Acervo pessoal

Foi no São Joao, 24 de junho de 1754, que se celebrou pela primeira vez a Festa do Bonfim - com o translado da imagem do Senhor do Bonfim, em procissão, da Igreja da Penha até a Colina Sagrada, - após, durante alguns anos, foi celebrada no período da Páscoa, até ser transferida por uma conveniência dos membros da Irmandade de Nosso Senhor do Bonfim, para janeiro, estabelecendo-se um critério, que hoje nem sempre prevalece, de realizar a Lavagem na segunda quinta feira após a Epifania, ou seja, a Festa de Reis.

 

Por que a festa deixou de ser celebrada no São João e na Páscoa? Além do período chuvoso, nas datas referidas, Itapagipe tinha se transformado num local de veraneio, onde os baianos abastados construíram chácaras, sobrados e palacetes. Daí a conveniência de se celebrar o evento em janeiro. O veraneio itapagipano passou a abranger três grandes festas: Senhor do Bonfim, Nossa Senhora da Guia e São Gonçalo do Amarante. Em sequência. Mais de um mês de celebrações, praticamente, todos os dias, considerando os novenários e a programação musical e festiva agregada.

 

Além da transferência da data de celebração, mudou-se, por uma conveniência, não sei se da Irmandade, ou da Igreja católica, ou de comum acordo, a data de origem da festa. A festa se originou em 1754, como citado, mas, a referência de origem é 1746, data em que Theodozio Roiz de Farias, Capitão de Mar e Guerra e traficante de escravos, trouxe de Setubal (Portugal) a imagem do Senhor do Bonfim e instituiu o seu culto.

 

Culto é uma coisa, festa é outra. Na Bahia sempre se confundiu uma coisa e outra, por motivos de fé. Explico melhor: de MÁ FÉ dos cronistas, com a cumplicidade de algumas irmandades para validar datas-fake de origem. O culto a um orago é culto, devoção apenas. Festa é festa, o que pressupõe um novenário, procissão com andores, bandas de música, fogos de planta e de artifício, quermesses, decoração de ruas e residências, infraestrutura de serviços: casas de romeiros nas localidades distantes, água e comida, lenha para iluminar as noites escuras etc.

 

O fato é que independentemente de se comemorar o culto, ou a festa, que a estas alturas tanto faz, a partir de 1803, deixou de ser evento de apenas um dia, o Domingo do Bonfim, com a introdução do novenário e no contexto: apresentação de Ternos e Ranchos, bandas militares e filarmônicas, improvisos de cantores de modinhas, seresteiros, torneios de argolinha, cavalhadas e uma feirinha de barracas autorizada pelo Conde dos Arcos, em 1811. Os afrodescendentes, nos seus horários de lazer, se divertiam praticando o samba de umbigada, batucadas, jogando capoeira, no Largo do Papagaio, distante do Largo da Colina. E no Beco do Gilu, o samba de Eustáquio Murubeca mandava ver.

 

A romaria espontânea da Lavagem

Africanos e afrodescendentes escravos serviam seus senhores, nos palacetes e sobrados, cozinhando; montando as mesas nos faustos banquetes; lustrando a prataria; abastecendo as moringas com barris de água, transportados em burricos; lavando piso, janelas e paredes; despejando os penicos longe do espaço (não existia naqueles idos canalizações de esgotos). E alguns trabalhavam na programação festiva: o famoso cantor de modinhas, Chico Magalhães, se exibia em vários espaços, tocando no seu piano de cauda que oito escravos carregavam no lombo, de uma esquina a outra. Chico improvisava canções à luz das estrelas e ao luar para encanto das plateias femininas.

 

Um dia surgiu a Lavagem do Bonfim, no modelo que prevalece até hoje, de romaria. Na quinta-feira anterior ao Domingo do Bonfim. Não há registros factuais de datas, nos livros da irmandade e nem nos arquivos baianos. Apenas indícios de que tudo teria começado espontaneamente com os escravos e libertos que carregavam água e lenha, para atender a demanda da festa, em carroças e burricos. Um percurso curto, restrito a Itapagipe. Do Porto da Lenha até a Colina Sagrada.

 

Se chamava Lavagem porque na quinta feira se lavava a igreja, tarefa delegada aos escravos e libertos, mulheres que lustravam as imagens, lavavam o piso empoeirado (as ruas eram de barro, não existia asfalto), deixando o templo nos trinques para o dia seguinte, a sexta feira, quando se celebrava uma missa, simbolizando o calvário e a morte de Jesus Cristo, prática que até hoje prevalece, com o componente sincrético de homenagem a Oxalá, dia em que os baianos se vestem de branco.

 

Novo percurso

O percurso Itapagipano da suposta origem da Lavagem, se ampliou com a construção da Avenida dos Dendezeiros, em 1798__ e mais tarde a avenida que partia do Largo de Roma até os Mares e daí até a Jequitaia. Estava definitivamente integrada a península Itapagipana com Salvador. É aí que a romaria cresce em público, primeiro os marinheiros que coletavam esmolas em panos de vela, junto os devotos, e logo se incorporaram bandas musicais, filarmônicas, congadas, marujadas, danças de cucumbis, gôndolas, carros de boleia, cortejos de baianas, e mais tarde cavalos, carroças enfeitadas, bicicletas ornamentadas, corsos, fanfarras, caminhões e até trios elétricos, até sua proibição.

 

E a Lavagem, de coadjuvante do evento principal, passou a ter mais relevância para os baianos do que o Domingo do Bonfim. Visitantes ilustres participaram, ao longo do tempo, e deixaram valiosos relatos. Dentre eles, a destacar, o Príncipe Maximiliano de Habsburgo que anos depois, quando imperador do México, foi fuzilado pela milícia de Benito Juarez; os sábios austríacos Von Martius e Von Spitz; o famoso escritor Stefan Zweig que a Bahia honrou com um busto na Barra, dentre outros. E, a partir da segunda metade do século XX, os órgãos de turismo promoveram a Lavagem e interferiram na sua organização, atraindo turistas do Brasil e do mundo.

 

E a Lavagem do Bomfim, tão rejeitada pelas elites no século XIX, tão discriminada pela mídia, tão questionada pela igreja, tornou-se o grande evento do Ciclo do Bonfim - maior do que o Domingo da festa oficial - e do janeiro baiano.

 

*Nelson Cadena é escritor e jornalista

 

*Os artigos reproduzidos neste espaço não representam, necessariamente, a opinião do Bahia Notícias

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