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PL 1904 é um retrocesso para democracia e representa interesse do Conselho Federal de Medicina, apontam especialistas

Por Camila São José

Foto: Igor Barreto / Bahia Notícias

Um retrocesso dos direitos das mulheres e da democracia. É assim que a advogada criminalista Milena Pinheiros, atuante em defesa de mulheres em situação de violência, classifica o projeto de lei (PL) 1904/2024 em tramitação na Câmara dos Deputados, mais conhecido como “PL do estupro”. A proposta pretende equiparar o aborto legal após a 22ª semana ao crime de homicídio simples, com pena de até de 20 anos.  

 

O aborto é autorizado no Brasil desde 1940 em casos de gravidez decorrentes de estupro e risco à vida da gestante e, para isso, basta o consentimento dela ou de seu responsável lei - como prevê o Decreto Lei nº 2.848. O procedimento em casos de anencefalia do feto - tipo de má-formação congênita incompatível com a vida fora do útero e caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo - só foi autorizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012. 

 

“O aborto quando surge, ele surge ainda muito tímido porque vem, na verdade, trazendo questões bem pontuais como é o caso do artigo 128 que diz quando é permitido”, pontua Pinheiro. “Quando a gente fala de aborto, a gente tem que lembrar que nós estamos falando de um direito constitucional que é a questão da escolha, da livre vontade de um ser humano. Claro que quando a gente está falando de aborto, também estamos falando de uma questão de vida, que é a vida do feto - inclusive o direito civil protege questões patrimoniais do natimorto, que é o bebê que nasce morto”, frisa a advogada em entevista ao Bahia Notícias. 

 

Nessa relação que envolve a preservação de vidas, Milena Pinheiro acredita ser necessário observar uma “hierarquia” onde é ofertado à mãe a opção de seguir ou não adiante com a gravidez, principalmente nos casos de violência sexual. A advogada sinaliza que uma gestação indesejada pode trazer consequências negativas não só para as mães, mas também para as crianças. “Não é muito melhor ela ter a possibilidade de escolha e ser responsável por todas as consequências dessa escolha do que ela ser obrigada pelo Estado, que se diz inclusive laico, para que ela tenha um bebê sem ela ter condições psicológicas, sociais, educacionais e financeiras de ter uma criança?”. 

 

Advogada Milena Pinheiro | Foto: Igor Barreto / Bahia Notícias

 

A gravidez, como destaca a advogada, não envolve apenas os nove meses do período gestacional. Após o nascimento do bebê, a mulher pode ser responsabilizada judicialmente caso não ofereça acesso à saúde, educação e moradia, por exemplo. “O governo pode inclusive retirar o direito dela ser mãe porque ela não tem condições de criar aquela criança, mas lá atrás ela não teve direito de escolher se ela poderia ou não levar essa gravidez”, frisa.

 

“Por que a população pode aceitar, por exemplo, que uma mulher - ainda que seja uma aceitação velada - que tem um parceiro fixo, tem DIU ou que usa pílula e tem uma gravidez porque o método [contraceptivo] falhou e ela pode, principalmente se ela tiver dinheiro, não ter aquele filho porque ela não está preparada psicologicamente ou ainda não é o momento dela ter um filho porque ela tem um foco agora na carreira, e uma pessoa que foi violentada não pode? Isso não era nem para ser discutido”, critica Pinheiro. 

 

PAPEL DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

Mas como um direito assegurado por lei voltou a ser questionado? O ponto crucial neste debate, segundo Milena Pinheiro e o advogado penal, Pedro Henrique Duarte, especialista em responsabilidade médica, violência doméstica e crimes sexuais, parte de resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM).

 

A resolução nº 2.378/2024 apresentada pelo CFM previa a proibição de médicos realizarem aborto (assistolia fetal) em gestações com mais de 22 semanas decorrentes de estupro. Tudo sob o argumento de que a assistolia fetal envolve a injeção de substâncias que induzem à parada do batimento cardíaco do feto antes de sua retirada do útero, impondo dor e sofrimento. O Conselho, no entanto, assegurou que essa posição não foi tomada para trazer prejuízo à mulher ou a outros grupos, nem para impedir o funcionamento de estruturas que são de competência do governo.

 

Porém, em maio, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, suspendeu a medida do CFM, respondendo a uma ação movida pelo PSOL. Na decisão liminar, Moraes afirmou que o Conselho Federal de Medicina extrapolou sua competência ao impor restrições em um direito assegurado por lei. 

 

Pouco tempo depois, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) apresentou o PL 1904, cujo requerimento de urgência para tramitação do projeto foi aprovado em votação relâmpago conduzida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), no dia 12 de junho. 

 

Deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), autor do projeto. Foto: Lula Marques / Agência Brasil

 

Segundo o texto de autoria do deputado, meninas menores de 18 anos poderão ficar internadas em estabelecimento educacional pelo período de três anos caso façam o aborto. Além disso, estabelece a pena maior do que a do estuprador, já que no Brasil o Código Penal fixa a condenação pelo crime de estupro de 6 a 10 anos de reclusão; quando há lesão corporal, a pena é de 8 a 12 anos de prisão e em caso de morte da vítima, 12 a 30 anos. 

 

Na sessão do Senado realizada no dia 17 de junho, inclusive, o CFM marcou presença e membros do Conselho voltaram a defender  proibição da realização de aborto após 22 semanas de gestão, mesmo nos casos previstos em lei, como o estupro. O presidente do Conselho Federal de Medicina, José Hiran da Silva Gallo defendeu a resolução nº 2.378/2024 e em seu discurso falou sobre “banalização da vida”, colocou a culpa na “modernidade” e afirmou que fetos na 22ª semana de gravidez são "seres humanos formados".

 

“O Congresso não está preocupado com o crime de estupro, com as consequências que isso vai causar na vida da mulher. Surgiu esse projeto de lei a partir de uma demanda de uma entidade de classe que quer legislar e não pode legislar em causa própria, nem contra os seus associados. E nessa lógica existe um lobby muito forte no Congresso, de setores da sociedade, e o Conselho Federal de Medicina é um setor forte financeiramente e tem representantes lá”, pontua Pedro Henrique. 

 

Advogado Pedro Henrique Duarte | Foto: Igor Barreto / Bahia Notícias

 

“O que o Conselho Federal de Medicina quer? Reduzir, em outras palavras, o que está havendo no mercado que é o aumento do número de faculdades, com o crescimento do número de profissionais e eles não têm como regular, então eles estão apertando o cerco nos processos disciplinares”, complementa o advogado. “Essa violação que a mulher vai sofrer é fruto de um interesse individualizado, egocêntrico de um Conselho Federal de Medicina que está muito mais preocupado em regulamentar e criar uma norma para punir os médicos que eventualmente pratiquem esses atos”.  

 

REVITIMIZAÇÃO

Ao legalizar o aborto e abordar a temática com a devida seriedade, Milena Pinheiro acredita, inclusive, que erros médicos poderão ser evitados diante de procedimentos feitos em clínicas clandestinas. “Quantas e quantas mulheres morrem vítimas de abortos ilegais? Será que legalizar o aborto a gente não pode diminuir o número de abotos ilegais? Porque quando você legaliza, você trata da matéria”. 

 

Não pautar o tema e pensar em punir em casos já assegurados pela legislação é, na opinião da advogada, revitimizar principalmente mulheres negras e pobres. “Se você tem o SUS, por exemplo, que pode dar a ela esse poder de escolha [seria um cenário melhor]”.

 

VOTAÇÃO

Diante da forte mobilização, Arthur Lira decidiu não seguir com a votação do PL 1904 este semestre e a previsão é que a análise ocorra somente após as eleições municipais de outubro. Porém o presidente da Câmara pretende criar uma comissão para debater o tema e discuti-lo na volta do recesso parlamentar.